quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

FEMINISMO, ANARQUISMO E REVOLUÇÃO

Partindo das questões levantadas pelas teóricas feministas pós-estruturalistas Rosi Braidotti e Elizabeth Grosz, para quem o feminismo deve propor definições móveis da subjetividade, escapando das políticas de afirmação da identidade, procuro pensar a experiência das militantes anarquistas ligadas ao Grupo Mujeres Libres, durante a Revolução Espanhola, entre 1936-39. Radical em sua contestação do poder de classe e de gênero, o Grupo reuniu mais de quarenta mil afiliadas por toda a Espanha, criou cursos de capacitação das trabalhadoras, creches, postos de saúde para as mulheres, “liberatórios de la prostitución”, além de publicar uma revista feminista, voltada para o debate das questões femininas. Considerando essa ampla e revolucionária experiência política, documentada nos jornais libertários da Espanha, como Solidaridad Obrera e Tierra y Libertad, nos treze números da revista que publicaram, também intitulada Mujeres Libres e em relatos auto-biográficos, pergunto se e como o anarco-feminismo praticado por elas criou um modo específico de existência, mais integrado e humanizado, já que crítico das oposições binárias como a que hierarquiza razão e emoção, masculino e feminino; se e como inventou éticamente; se e como pode operar no sentido de reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Na direção dessas colocações, os conceitos de “subjetivação” e de “artes da existência”, que norteiam as problematizações de Foucault sobre a produção da subjetividade e inspiram as reflexões das teóricas feministas acima citadas são de fundamental importância.





Não é novidade dizer que as experiências femininas na Revolução Espanhola, entre 1936 e 1939, foram obscurecidas por narrativas que não valorizam a dimensão do gênero. Na tradição histórica que se constituiu em nosso país, por exemplo, os estudos sobre esse importante movimento revolucionário foram marcados por um olhar que não só privilegiou a atuação dos homens, como deu maior visibilidade às lutas antifascistas, focalizando, na maior parte das vezes, grupos comunistas e trotskistas em luta contra os franquistas, apesar do reconhecimento da participação de outros setores políticos importantes, como os anarquistas. Daí a grande desinformação a respeito das criações revolucionárias, nesse movimento político e social, tanto quanto sobre a atuação das mulheres. Como observa Shirley Mangini, saindo dos marcos nacionais:

Dos milhares de artigos e livros sobre a Guerra Civil espanhola, poucos contêm informações sobre o papel das mulheres na guerra e no período seguinte, exceto algumas descrições ou simples referências em notas de rodapé. E, no entanto, (...) a oportunidade mais revolucionária para a emergência das mulheres na cena intelectual e política ocorreu nesse momento.(Mangini, 1991:)171)

Para muitos e muitas, portanto, a Revolução Espanhola constitui um marco histórico fundamental, pelas rupturas profundas que promoveu na ordem social burguesa e pelas possibilidades de invenção da liberdade que revelou ao mundo capitalista, especialmente com suas experiências autogestionárias nas cidades e nos campos. Muitos militantes libertários, entre mulheres e homens, ainda hoje, indignam-se com esse esquecimento, pois compartem o sentimento de terem participado de uma genuína revolução popular, como dificilmente se repetirá na História, como afirmou um deles, em entrevista recente.[1] Afinal, os anarquistas tinham construído toda uma história de resistências e lutas, tinham formado gerações no mundo do trabalho com seus ateneus, bibliotecas, escolas modernas, centros culturais e grupos artísticos, e já tinham 70 anos, quando surge o Partido Comunista espanhol.


“Para os anarquistas tudo se referia à Espanha de 1936, 1939, tudo era exemplificado com a Espanha. Só que havia uma diferença. Entre os anarquistas, muitos participaram da Guerra Civil na Espanha, realmente ...” observa, em suas lembranças, Maurício Tragtenberg.( Tragtenberg,1999: 57 )


Evoco, ainda, a memória de duas militantes libertárias, profundamente comprometidas com a preservação histórica dessas lutas: a espanhola Federica Montseny e a escritora italiana Luce Fabbri. A primeira, protagonista dos eventos revolucionários da Espanha, foi nomeada ministra da Saúde e da Assistência Social, no gabinete de Francisco Largo Caballero, em novembro de 1936; como tal, propôs implementar uma ampla reforma na saúde, descentralizando o atendimento médico, reorganizando os hospitais, legalizando o aborto, criando casas para abrigar as mulheres carentes( Greene, 1997.) A segunda, radicada no Uruguai, acompanhou entusiasticamente cada minuto da Revolução, mobilizando diversos tipos de apoio e solidarização em seu meio; produziu, além de vários artigos políticos para os jornais libertários, uma coletânea intitulada 19 de Julio, com o pseudônimo de Luz D. Alba, em que reúne depoimentos e outros documentos de vários combatentes, testemunhando as criações coletivas da Revolução, a coletivização das fábricas e dos campos, a reforma pedagógica, assim como as perseguições e as mortes ocorridas no processo político revolucionário.( Luz D. Alba, 1936).

A primeira registra o evento em sua autobiografia e reivindica sua reatualização no presente:

As semanas vividas em Madri naquele período, aqueles meses de novembro e dezembro de 1936 permanecem em minha memória como os mais extradordinários de minha vida. Ver todo um povo espontaneamente mobilizado, trabalhando febrilmente para organizar sua defesa não é um fato histórico que se veja todos os dias, afirma em Mis primeros cuarenta años.(Montseny, 1987, 107)

Do mesmo modo, Luce Fabbri se refere à Revolução Espanhola como o acontecimento mais marcante de seu passado: Foram três anos em que vivemos mais na Espanha do que aqui, com o coração; na realidade, tudo o mais havia desaparecido...”( Rago, 2001, 188.)


Não são apenas as histórias da desapropriação das extensas propriedades de terra e da autogestão efetivada por milhares de pessoas nas fábricas e nos campos, que mal conhecemos. Muitas experiências sociais e culturais, como as promovidas pela Agremiação anarco-feminista “Mujeres Libres”, fundada por três ativistas libertárias, também foram silenciadas por várias décadas e, na verdade, vieram à tona, em grande parte, pela ação de suas próprias antigas militantes, desde o final do franquismo, em 1975.[2]

Em linhas gerais, a história desse grupo anarco-feminista começa em abril de 1936, às vésperas da eclosão da guerra civil, quando três combativas anarquistas, a jornalista e poetisa Lucía Sanchez Saornil, a advogada Mercedes Comaposada e a médica Amparo Poch y Gascón se unem para criar o grupo “Mujeres Libres”, dedicado à luta pela emancipação feminina no mundo do trabalho.

Lucía Sanchez Saornil, nascida em Madri, em 1895, trabalhara na Companhia Telefônica de Barcelona e durante uma série de greves de que participa, adere à CNT – Confederação Nacional do Trabalho, de orientação anarquista. A partir daí, radicaliza sua participação, escrevendo nos periódicos libertários Solidaridad Obrera e Tierra y Libertad. Em fins de 1935, anuncia seu projeto de criação de uma agremiação política dedicada à causa das mulheres. Mercedes Comaposada, filha de um ativo sapateiro anarquista, nasce em Barcelona, em 1901, e aprende desde cedo a montar películas; mais tarde, ao participar da CNT – Confederação Nacional do Trabalho, encontra o escultor Balthasar Lobo, a quem se une.

Enquanto advogada, desgostosa com o comportamento dos trabalhadores num curso que oferecia em um dos sindicatos da CNT, em 1933, encontra Lucía, com quem logo passa a discutir a questão feminina no anarquismo. Amparo Poch y Gascón, nascida em Saragoça, em 1902, torna-se médica pediatra e também assina como a Dra. Salud Alegre. Assim como as outras duas, defende a liberdade sexual, a maternidade consciente e o aborto.[3]


As três libertárias já traziam uma bagagem política expressiva, como militantes de esquerda, tanto quanto ideais feministas, sobre os quais escreviam nos jornais “Tierra y Libertad” e “Solidaridad Obrera”, ou nas revistas “Estudios”, “Generación Consciente” e “Umbral”. Revoltavam-se com as dificuldades e com a opressão sexual enfrentadas pelas mulheres pobres, mesmo no meio libertário, mais oxigenado, em que eram solicitadas e incentivadas a participar do espaço público.

Desde o último quarto do século 19, os anarquistas haviam conseguido forte penetração social, fundando sindicatos, criando ateneus libertários, promovendo inúmeras atividades culturais por toda a Espanha. Apesar de suas críticas contundentes às instituições sociais, como a Igreja e a família, apesar dos ataques ao casamento, às desigualdades sexuais, à educação coercitiva para as crianças, na prática, a situação feminina continuava fortemente opressiva e poucas melhoras haviam sido feitas.


Portanto, quando o pequeno grupo se constitui, não demora a encontrar-se com outras companheiras, que também começavam a atuar em Barcelona, na “Agrupación Cultural Feminina”, formada por anarquistas como Pilar Grangel, professora racionalista e militante da CNT e Áurea Cuadrado. Rapidamente, novos grupos locais são criados por toda a Espanha e inúmeras mulheres aderem à organização. Muitas são operárias analfabetas; outras autodidatas, como Lola Iturbe, ou formaram-se nos ateneus libertários. Espanholas, na grande maioria. A anarquista Etta Federn, por sua vez, vinha da Alemanha e também opta por unir-se ao grupo.

Mudar as condições de existência das mulheres pobres da Espanha, capacitando-as para o trabalho e para a vida pública, retirando-as do confinamento doméstico e do obscurantismo religioso, proporcionando-lhes meios práticos para a participação na vida social, política e cultural foi uma preocupação constante nas propostas e realizações do Grupo. Assim, além do “Instituto Mujeres Libres” e das centenas de agrupamentos locais espalhados pelo país, elas fundam o “Casal de la Dona Traballadora”, no Paseo de Gracia, em Barcelona, espaço cultural destinado aos cursos, palestras e oficinas que realizam para cerca de 600 mulheres.

No bairro de Sans, nesta cidade, criam um “Instituto nocturno”, também chamado “Mujeres Libres”. Segundo um anúncio publicado no jornal CNT, de 1937, ficamos sabendo que aí eram oferecidos cursos de Aritmética, Gramática, História da Literatura, Geografia, História, Contabilidade, Ciências Naturais, Anatomia, Idiomas, Desenho, cursos de Agricultura, Puericultura, Enfermagem, formação de secretárias, mecanografia, taquigrafia, redação e cursos em Propaganda. Além disso, poderiam estudar mecânica na escola de transporte, entre outros ofícios que não eram tradicionalmente oferecidos às mulheres, mesmo que estas já ocupassem um largo espaço no mercado de trabalho industrial.

Contudo, mais do que isso, a mudança que essas militantes visavam enquanto anarco-feministas apontava para a criação de novos estilos de vida, fundados em uma ética capaz de propor novas formas de sociabilidade e de produzir subjetividades mais libertárias.[4] A questão da produção da subjetividade se colocou enfaticamente, sobretudo nesse contexto revolucionário, em que as/os anarquistas lutaram não apenas para destruir o poder político concentrado no Estado e fortalecido pela ajuda material de outros países, mas também investiram fortemente para transformar radicalmente a vida econômica, as relações sociais hierárquicas e desiguais e garantir as manifestações culturais populares.

De fato, a população mobilizada, ao lado dos libertários, transformou a luta antifascista numa revolução social, como observam vários historiadores[5] - e esquecem outros -, tratando de criar organismos econômicos autogestionários e de incentivar (Boochin, 2000. ) formas solidárias de sociabilidade por toda a parte.


Em se tratando da experiência do “Grupo Mujeres Libres”, as questões sociais se aliaram às lutas pela libertação feminina e, nesse sentido, elas procuraram promover novos modos de constituição de si, capazes de subverter os códigos burgueses de definição das mulheres como esposas, mães, exclusivas do lar, ou como seu avesso. Mas não de uma maneira apenas negativa, isto é, como formas de reação ao poder, já que essas lutadoras implementaram muitas iniciativas pioneiras, como a criação de cursos de capacitação das operárias, nos quais desejavam despertar a consciência feminina para as idéias libertárias, como afirmavam. Cursos de alfabetização e profissionalizantes, visando criar novas formas de inserção social para as mulheres pobres; centros de assistência médica e de educação sexual; creches; liberatórios de la prostitución, isto é, casas destinadas às que desejassem sair da prostituição e também para que as prostitutas pudessem ter tratamento médico e orientação para melhorar suas vidas, como afirmava Pura Perez[6], além de espaços, como os da revista que leva o nome do Grupo, em que puderam refletir sobre si mesmas e criar toda uma cultura feminista entre as militantes e simpatizantes do anarquismo.

A revista, da qual existem apenas 13 números, era escrita, feita e subvencionada só por mulheres, pois “sabemos por experiência que os homens, por muito boa vontade que tenham, dificilmente atinam com o tom preciso.” [7] Abordava temas variados relativos ao universo feminino, como maternidade consciente, prostituição, puericultura e infância, moda, ginástica, e discutía a constituição de uma nova moral sexual. Revelando uma preocupação estética, para além de ética, a revista divulgava as realizações do grupo, propagava as idéias libertárias, chamava as trabalhadoras para a reflexão e militância anarco-feminista.

Vale notar que as possibilidades criadas de outras formas de produção da subjetividade não se efetivaram num marco individualista, como se poderia supor, e aqui recorro às conceitualizações de Foucault, pois visavam a uma intensificação das relações consigo mesma, mas não no sentido corrente de uma valorização da vida privada em detrimento da esfera pública, nem no de uma acentuação do valor do indivíduo sobreposto em relação ao grupo.[8]

Longe de estimular o apego à esfera privada como refúgio em relação ao mundo competitivo dos negócios e da política, como defendia a ideologia da domesticidade contra a qual, aliás, elas se batiam, essa “cultura de si” do anarco-feminismo, se assim podemos chamar, passava pelo estabelecimento de novas relações consigo, mas também com o outro, relações solidárias, de amizade, de companheirismo político, anti-hierárquicas, num meio bastante sofrido como o operário. Visava, portanto, fortalecer as redes da militância política tanto entre elas mesmas, como com os companheiros ligados a outras entidades, sobretudo nesse momento de intensa movimentação revolucionária em que um novo mundo parecia totalmente possível.


Essa questão não passou desapercebida para algumas historiadoras, como a norte-americana Temma Kaplan, que registra a preocupação dessas ativistas libertárias com as dimensões psico-sociais, em geral ignoradas pelos homens, evidenciadas em investimentos para

ensinar as mulheres a agir politicamente, a assumir posições de liderança e a desenvolver novas imagens de si como povo potencialmente autônomo (...).”( Kaplan, 1997, 418)

Segundo ela, esses temas escapavam aos militantes do sexo masculino, que, como outros revolucionários, acreditavam firmemente que o sucesso da Revolução em termos econômicos e sociais levaria necessariamente ao fim da opressão sexual e da desigualdade de gênero. O que significa que muitas mulheres continuavam a enfrentar imensas dificuldades tanto diante da tirania dos pais, maridos e irmãos, quanto pela proliferação da prole, ou pelas situações de abandono, já que eram pobres e sem dote.


Contudo, há que se relativizar essas afirmações, pois mais do que em qualquer outro país, a cultura anarquista espanhola contou com a adesão de médicos e psiquiatras libertários, que lutaram pela transformação da moral sexual conservadora e preconceituosa, tanto ideologicamente, através de livros, folhetos e artigos publicados na imprensa anarquista, quanto por iniciativas práticas.

A revista “Estudios”, por exemplo, possuía uma seção intitulada “Consultório Psico-sexual”, em que o Dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Psicologia Sexual e em Sexologia, respondia às cartas dos trabalhadores, procurando apresentar soluções para seus problemas sexuais e sentimentais, ou prestar esclarecimentos sobre distúrbios físicos e psicológicos.( Rago, in Soares, 2001:145-161) O Dr. Isaac Puente, assassinado em 1936, pelos franquistas, publicava nas revistas “Generación Consciente”, “La Revista Blanca”, “Umbral” e nos jornais “Solidaridad Obrera”, “CNT”, “Tierra y Libertad”, entre outros divulgando suas concepções filosóficas e sociais libertárias.


O próprio nome escolhido pelo Grupo para se identificar e ser identificado é surpreendente e revelador: Mujeres Libres demarca com ousadia um espaço próprio, já que assumido no contexto de uma Espanha católica, machista e ultraconservadora, em que a liberdade feminina era associada à degeneração moral pelo discurso religioso e pelo científico. Enquanto a Igreja abençoava as mulheres puras e santificadas, associadas à imagem de Santa Maria, os médicos burgueses, influenciados pelas teorias lombrosianas da degenerescência, afirmavam cientificamente que elas haviam nascido para a maternidade e para o lar.

No rol das transgressoras, alinhavam-se prostitutas, lésbicas, feministas, anarquistas e socialistas. Esse pensamento predominava no mundo ocidental naquele período, e vale lembrar que até os anos 1970, não apenas no Brasil, o termo mulher pública era sinônimo de prostituta. Nos inícios do século 20, não era raro que costureiras, floristas, chapeleiras, trabalhadoras das fábricas de tecido e artistas fossem percebidas como prostitutas, não apenas na Espanha. Portanto, as palavras de Lucía, refletindo a respeito do nome dado ao grupo são esclarecedoras:


Pretendíamos dar ao substantivo “mulheres” todo um conteúdo que reiteradamente se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo “livres”, além de nos definirmos como totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito – mulher livre – que até o momento havia sido preenchido com interpretações equívocas, que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem incompatíveis.

Mulher e direito à liberdade são associados em seu discurso contestador. O feminismo que defendiam, contudo, difere muito do feminismo liberal vigente então. Na tentativa de diferenciarem-se das liberais, que lutavam pelo direito do voto, pelo acesso à esfera pública, deixando inquestionados os códigos da feminilidade da época, as “Mujeres Libres” chegaram, às vezes, a declararem-se não-feministas, ambigüidade que se expressa nos próprios artigos publicados em sua revista.

Assim, se de um lado, a própria revista “Mujeres Libres” afirmava desejar

reforçar a ação social da mulher, dando-lhe uma nova visão das coisas, evitando que sua sensibilidade e seu cérebro se contaminem com os erros masculinos. E entendemos por erros masculinos todos os conceitos atuais de relação e convivência (...). (no.1, maio de 1936);

de outro, criticava o feminismo que, segundo elas, havia levado as mulheres à guerra

feminismo que buscava sua expressão fora do feminino, tratando de assimilar virtudes e valores estranhos (...).


Propunham, portanto, um outro feminismo, como diziam claramente:

é outro feminismo, mais substantivo, de dentro para fora, expressão de um modo, de uma natureza, de um complexo diverso frente ao complexo, à expressão e à natureza masculinos. Está claro que elas defendiam uma afirmação das mulheres e, por isso mesmo, recusavam a publicação de quaisquer artigos escritos por homens, na revista, reservando e preservando o espaço feminino que construíam e queriam fazer expandir. Como observam: (a revista) quer (...) fazer ouvir uma voz sincera, firme e desinteressada: da mulher, porém uma voz própria, a sua, a que nasce de sua natureza íntima (...)


Ao mesmo tempo, se de um lado o discurso do Grupo aparece muitas vezes como essencialista, ao invocar uma natureza feminina diferenciada da masculina e, por isso mesmo, capaz de trazer novas formas para modelar a vida social e cultural, de outro, destaca-se por sua crítica ao modelo hegemônico de feminilidade, como aparece em vários números dessa publicação. Assim, enquanto defendiam a igualdade de direitos entre mulheres e homens, também questionavam a maternidade como função essencial da mulher:

que a mulher cuja vocação não for doméstica e sua ampla realização, a maternidade, tenha as mesmas facilidades que o homem para buscar e obter outras oportunidades que lhe permitam conseguir sua liberação econômica. (n.5)

Aliás, num artigo de Lucía Sanchez Saornil, que não quis ser mãe, em que critica certas organizações feministas, a maternidade aparece identificada negativamente pela metáfora animal. Diz ela:

“(...) recolhendo ao sentido tradicional da feminilidade, (aquelas organizações) pretendiam que a emancipação feminina só estava no fortalecimento daquele sentido tradicionalista que centrava toda a vida e todo o direito da mulher em torno da maternidade, elevando esta função animal até sublimações incompreensíveis. Nenhuma nos satisfez”. (Saornil, CNT, 1937:41 )

Segundo o depoimento de Sara Berenguer, dado muitas décadas depois, “Mujeres Libres” foi um grupo atuante dedicado à luta pela autonomia feminina, mas não tendo em vista excluir a outra parte, os homens. Segundo ela, - que se uniu a um companheiro e teve vários filhos e netos - , como um grupo revolucionário, este lutou pela emancipação dos dois sexos. Ao comparar o “Mujeres Libres” aos grupos feministas norte-americanos da atualidade, delimita claramente as diferenças:


“Este não é o caso dos grupos feministas na América do Norte e em outras partes do mundo, os quais tendem a dispersar sua energia e seu tempo discutindo e escrevendo acerca da teoria da opressão da “pobre mulher” pelo “homem malvado”, mantendo-se deste modo demasiado ocupadas para ajudar às mulheres pertencentes às classes sociais com mais desvantagens e menos oportunidades, como são as minorias, as pessoas pobres e as mulheres da classe operária, que necessitam de ajuda prática, educação e informação.”Idem:.101)




As concepções de gênero que orientavam as práticas e as representações que essas ativistas construíram de si mesmas e em relação ao outro foram bastante subversivas e radicais. Longe dos ideais de feminilidade e de masculinidade que vigoravam na Espanha dos anos trinta, o Grupo “Mujeres Libres” defendia o fim das hierarquias sexuais e sociais, o amor livre, a maternidade consciente, o direito ao aborto, além dos direitos de acesso à cultura, ao trabalho e à educação.

Se não se pode generalizar essas concepções para todas as mulheres que se envolveram com o Grupo, ao examinar a biografia das três fundadoras, observa-se que apenas Mercedes teve um companheiro fixo, o escultor Balthazar Lobo e desenhista da Revista. Lucía viveu com sua amiga América Barroso a vida toda, enquanto a dra. Amparo, que defendia claramente o amor livre, não se fixou com nenhum homem. Nenhuma teve filhos.


Os discursos e as práticas do Grupo soam, hoje, com uma impressionante atualidade e parecem bem mais próximos das questões formuladas pelo feminismo contemporâneo do que os de suas precursoras institucionalmente reconhecidas, ou seja, as antigas feministas liberais. Num debate relativamente recente, questionando as políticas afirmativas da identidade, Elizabeth Grosz sustenta que o feminismo precisa reconceitualizar o que o entende por subjetividade, discordando que se trata de libertar as mulheres, pois reconhecer identidades seria defender uma política servil. Segundo ela:

“O feminismo(...)é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.”( Grosz.,2002.)




Outra conhecida feminista, Rosi Braidotti, afirma que

figurações de subjetividade nômade, complexas e mutantes estão aqui para ficar, e propõe abandonar o lar, porque o lar é frequentemente local de sexismo e racismo – um local que nós precisamos retrabalhar política, construtiva e coletivamente.” (Braidotti, 2002,.14)


E´ possível sugerir que essa discussão se encontra em parte com as posições que, nos anos trinta, formula Amparo Poch y Gascon, em seu “Elogio del amor libre”, consciente dos efeitos nocivos e paralisantes da vida doméstica e do modelo romântico de feminilidade:

I. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-te de la lluvia y un lecho para que descanses y me hables de amor. Pero no tengo Casa. No quiero! No quiero la insaciable ventosa que ahila el Pensamiento, absorbe la Voluntad, mata el Ensueño, rompe la dulce línea de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar en el anchucroso “más allá” que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. (...)

Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e implacable garra; ni el Derecho, que te limita y te niega. Pero tengo, Amado, um carro de flores y horizonte, donde el Sol se pone por rueda cuando tú me miras.(. Gascón, 1936:95/101. )

Se pensarmos na casa, como símbolo da domesticidade, associado à idealização romântica da mulher como rainha do lar, nascida para a maternidade e para a esfera do mundo privado, ou da privação, como diz Hannah Arendt, o discurso de Amparo soa totalmente radical e transgressivo, aliás, como foi sua própria experiência de vida.

Para Mercedes Comaposada, no entanto, Mujeres Libres não era uma entidade feminista, mas um centro de capacitação da mulher em todos os terrenos cultural, econômico, social... Enfim, se há várias posições internas em relação à questão feminista, politicamente se colocam contra o sistema capitalista, pela abolição do Estado, pela direção da economia pelos sindicatos, a favor da implantação do “comunismo libertário”. No entanto, ou principal alvo do Grupo foi a questão específica da mulher, acreditando-se que a libertação feminina era condição sine qua non para a mudança revolucionária da sociedade. Daí, as críticas contundentes aos homens anarquistas, que, segundo Lucía, se consideram o umbido do mundo.

Em relação à comunidade de mulheres que criaram, todas se referem, em suas memórias, às fortes relações de solidariedade estabelecidas entre elas. Segundo Conchita Liaño:

absolutamente todas as mulheres integrantes de MM.LL. havíamos feito da solidariedade à mulher da Espanha um valor essencial. Tudo girava ao redor da solidariedade, porque, volto a dizer, não havia líderes. (...) Teria sido possível comparar-nos a uma colméia de abelhas, cada qual em seu lugar desempenhava sua tarefa. [8]

É interessante notar como ela questiona o modo pelo qual as mulheres então criavam seus filhos, dando privilégios especiais aos meninos em relação às meninas. Segundo Liaño:

(para) nós, as fundadoras de MM.LL., era imperativo que as mulheres compreendessem que não era impossível sacudir esse condicionamento atávico e deviam começar a modificar os esquemas a partir de si mesmas e de seu próprio lar, começando por sua descendência filial, não outorgando aos varões privilégios sobre as meninas. Por que deviam as meninas serem empregadas de seus irmãos?

Aliás, depois de um ano de existência, o Grupo consegue realizar a Primeira Conferência Nacional, em Valência, em 22 de agosto de 1937, o que revela seu rápido crescimento. Em seguida, constitui uma Federação Nacional de Mujeres Libres, em bases anarquistas. A historiadora Mary Nash indica um total de 153 agrupamentos locais de Mujeres Libres, criados entre 1937/38.


Não vinculado oficialmente a nenhum organismo político e defendendo tenazmente a autonomia política, “Mujeres Libres” se declarava anarquista e se dizia identificado com a CNT – Confederação Nacional dos Trabalhadores e FAI - Federação Anarquista Ibérica, também anarquistas. Nem por isso as relações que mantiveram com esses grupos políticos deixaram de ser tensas. Os militantes das “Juventudes Libertárias”, em especial, tiveram muitas restrições ao grupo, visto como separatista, pois temiam sua concorrência na cooptação das jovens militantes femininas.

Em suas memórias, uma das participantes do grupo, Conchita Liaño, estranha essa atitude, afirmando que a reação dos anarquistas em não querer reconhecer politicamente o grupo havia sido muito decepcionante, pois até mesmo os comunistas tinham criado uma organização feminina, a “Mujeres Antifascistas”. No entanto, também admite que isso não os impedia de dar-lhes um importante apoio econômico. Outra ativista, Pepita Cárpena, afirma em suas memórias:
Tampouco entendo o porquê da rejeição de Mujeres Libres, que nunca os companheiros quiseram integrar em seu seio (como fizeram com a F.I.J.L. – Federação Ibérica de Juventudes Libertárias) apesar do apoio de nossa querida Emma Goldman, que intercedeu em nossa causa.

Em seguida, valoriza a fundação da organização:

Quando estive entre as companheiras pude compreender quão bem-fundado foi esse grupo, a visão que tiveram e como entre todas era mais fácil expressar-se. Não esqueçamos que ainda pesavam os preconceitos sobre nós. Não é em vão que se recebe uma educação permanente para que de repente caiam todos os tabus.” [9]

Maria Rodrigues Gil, também militante, estabelece a diferença de seu grupo com outros do mesmo período:

À diferença dos setores femininos dos partidos políticos, Mujeres Libres foi sempre uma organização completamente autônoma da CNT e do movimento anarquista em geral. Também, à diferença dos setores femininos dos partidos ( e de todos os grupos de feministas que eu conheci, em Mujeres Libres, assim como na CNT, não existiu hierarquia de nenhum tipo, sendo uma organização verdadeiramente anarquista e democrática em seu mais puro sentido, sem permitir que a adesão ao poder ao controle frustasse seus esforços para ajudar a mulher e a humanidade em geral. (p.102)

Valendo-me de alguns conceitos de Foucault, creio que se pode afirmar que com suas artes da existência, ou técnicas de si e de relação com o outro profundamente renovadas, feministas e libertárias, as práticas do Grupo “Mujeres Libres” se conectam com nossas preocupações atuais e podem, por isso mesmo, constituir-se num importante repertório para nossa atualidade.

Vale notar que, num momento em que as portas têm-se aberto para a participação feminina no mundo político, cultural e social e em que o feminismo é considerado, até mesmo por aqueles que pouco se ocuparam com as questões femininas, como a única revolução que deu certo no século 20, também causa polêmica a emergência de subjetividades ambiciosas, autoritárias e até mesmo bélicas, que contrariam as propostas libertárias do feminismo. Afinal, a aposta maior do feminismo na importância de libertação das mulheres, na conquista de seu direito à cidadania vinculava-se à crença de que as mulheres haviam passado por experiências muito diferenciadas das masculinas, o que as aproximava mais dos valores positivos de construção social.


Finalmente, se como propõe Gaddis, uma maneira de valorizar a história e de mostrar suas valiosas contribuições decorre de sua capacidade de oferecer mapas, um pouco como os geógrafos, transmitindo experiências do passado, único banco de dados que possuímos (Gaddis 2003: 23) então faz todo sentido ouvir atentamente o que as Mujeres Libres têm a nos contar, pelo que podem nos enriquecer e aumentar nossa capacidade de crítica e de invenção ética.


RETIRADO DO ZINE MOLOTOV DA ESPANHA

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